Um ancião em Mog Won

Tarcísio Souza
9 min readDec 25, 2020

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Uma jornada a 200 anos de história da arte no coração do leste asiático

O aeroporto de Mog Won parece uma rodoviária de cidade do interior. Pequeno, abarrotado de vendedores e pessoas que nunca foram ou vão a lugar nenhum. Cabe na sentença o sentido literal e o metafórico.

Achei que precisaria vagar por horas até encontrar algo noticiável. Quando esperava o táxi para o hostel, avistei um senhor que aparentava ter quase oitenta anos. O homem estava sentado ao lado de um rack. Aquele móvel me lembrava muito um que meu pai tinha quando eu era jovem e não precisava de fazer perguntas para ganhar a vida.

Não havia sequer um CD naquelas divisórias ou caixas de som. Na superfície mais alta havia uma impressora e um tablet bastante ultrapassado onde passavam imagens feitas em estética 8-bit — Aquelas de videogames de segunda ou terceira geração como o Hi Top Game e o Master System. Retratos, paisagens surrealistas, flores, estradas, quartos que pareciam ser de trinta anos atrás. Me aproximei para apreciar aquelas figuras e conversar com o senhor.

Seu nome era Kwuaig Hei. Disse que não tinha contato com filhos, somente com três de seus oito netos e com muitos bisnetos e tataranetos. Havia investido naquela forma de arte após aprender muito sobre ponto-cruz com seus pais. Segundo Kwuaig ele tinha visto o estilo se desenvolver e adaptou a estética à sua época. Quando indaguei sobre sua idade, pensei estar sendo vítima de um trote, porém o sistema de registro de nascimentos da República de Tsiuo confirmava — eu estava diante de um senhor de 204 anos.

Contei a Kwuaig que era jornalista e havia chegado em Tsiuo em busca de uma reportagem. Ele topou me conceder uma entrevista após seu horário de trabalho. Todos os dias, das oito da manhã às seis da tarde, sem sábados, nem domingos, nem feriados, o bicentenário trabalhava. Só parava para comemorar seus aniversários, motivo de grande festa entre a família.

Às 17:55 Bing Hei, seu bisneto mais velho, de 47 anos, parou uma pequena caminhonete do outro lado do ponto dos táxis. Atravessou a rua e começou a desmontar o equipamento do bisavô. Quando o vi chegando, saí do café do aeroporto e ofereci ajuda. Enquanto carregávamos o transporte, Kwuaig se direcionou ao carro com sua bengala e se aconchegou no banco do carona. Para mim, sobrou a carroceria.

Bing e seu bisavô viajavam em silêncio. Fui apreciando a paisagem até a sua casa. Um riacho com cheiro de esgoto, muito lixo nas encostas e adolescentes com expressões que misturavam malandragem e prepotência compuseram minha lembrança. Eram poucos os idosos na rua e quase não havia trânsito.

O centro da cidade de Mog Won

Paramos próximo a um beco. Kwuaig desceu, pegou seu tablet e fez sinal para que eu o acompanhasse. Bing se foi com o resto do equipamento e nenhum de nós trocou nenhuma palavra.

A casa do ancião parecia modesta. Não me deixou entrar. Sua varanda era composta de duas cadeiras de praia bem velhas e um rolo de fios daqueles gigantes era usado como mesa. Ele entrou e minutos depois voltou com um jarro cheio de chá gelado e duas canecas de plástico. Quando se acomodou e serviu os copos, acendeu seu cachimbo e fez sinal para que eu começasse a entrevistá-lo.

Como é possível que alguém viva 200 anos?

Veja bem, meu filho, eu não tenho a menor ideia. Quando eu tinha por volta de 120 minha família quis descobrir. Me levaram aos médicos, fizeram alguns exames e o máximo que descobriram foi que meu corpo parou de envelhecer aos 72.

Mas o senhor não se questiona em relação a isso? Afinal, você conhece outra pessoa que tenha a sua idade?

Basicamente todo mundo que eu conheci na juventude já morreu. Eu tenho outras coisas para fazer e pensar, acho que eu tenho algum tipo de sorte, né? Ou de maldição, sei lá. Vai que eu sou algum Matusalém, algum tipo de coisa assim, prefiro viver. Como dizia meu pai: “a hora que morrer, enterra”.

Tem uma questão que me deixa muito curioso. A expectativa de vida no seu país é de 74 anos. Considerando que o senhor já se aproxima do triplo dessa idade, hoje o senhor não convive com mais ninguém com quem cresceu e mesmo envelheceu. Me conta um pouco sobre isso.

A gente cresce entendendo a ideia de que vai perder os pais, tios, avós, outros familiares e amigos com idade mais ou menos parecida. Quando minha esposa faleceu eu achei que seria a grande dor da minha vida, mas que em alguns anos estaríamos juntos na eternidade. Esse dia não chegou e, na verdade, foi tudo pior. Eu fiquei destruído quando vi meus filhos e depois alguns netos morrerem. Filhos não deveriam morrer antes dos pais.

Mas tenha uma certeza na vida: no fim das contas a gente se acostuma com tudo, por mais que doa. Uma vez li um poema que dizia assim “perder um amor dói muito. Dois nem tanto”. Hoje tenho meus netos, bisnetos. Até tataraneto eu tenho. Mas depois dos 120 eu comecei a ficar mais recluso, meu temperamento às vezes é complicado.

Eu notei que o senhor e o Bing não se falam muito.

A relação da gente é um pouco complicada, mas ele nunca me deixa na mão. A gente brigou uns meses atrás, mas não há de ser nada. Mais dia menos dia ele tá aí na sua cadeira tomando chá de octafila comigo.

Eu nunca tinha ouvido falar de uma pessoa que viveu 204 anos. O recordista mundial é um japonês que viveu cerca de 115 anos. O senhor nunca foi entrevistado?

Aqui é um país em que não se tem muito essa coisa de jornalismo, celebridade. O Estado controla muito as coisas também. Isso é mais coisa do ocidente.

E qual é a sensação?

Não estou sentindo nada de diferente.

Sua família ou algum cliente não tentou te tornar conhecido?

Que cliente? Ninguém compra minhas obras. Essa coisa de celebridade que vocês têm lá no ocidente não é comum aqui não, a internet é toda controlada pelo Estado.

Me conta um pouco sobre o seu trabalho como artista. Como começou seu interesse pela arte em 8-bit?

Ah sim. É desse jeito que chamam hoje em dia, né? Veja bem, os meus pais eram grandes artesãos. Sabiam tudo da técnica de ponto-cruz. Naturalmente eu segui os passos deles, aprendi e tudo mais. Minha única irmã morreu cedo, aqui teve um problema de radiação e ela teve câncer aos doze anos.

Mas aquela coisa de ficar criando padrão, boneco, flor eu achava meio bobo. Queria fazer uns desenhos diferentes e tudo, fui aperfeiçoando minha técnica mas os trabalhos não vendiam. Aqui se gosta mesmo é da tradição. Todo mundo dizia que era péssimo, que não vendia. Eu parei e aceitei a regra. Fui fazer o que dava dinheiro e joguei tudo fora.

Quando eu estava com meus 160 e poucos anos, começou a popularizar essa coisa de mangá no Japão e eu comecei a atentar para uma estética diferente. Aí veio a coisa dos videogames, o Famicom, Mark-III. Eu gostei muito de como a imagem aparecia ali, já tinha uma aposentadoria do Estado e voltei a fazer minha arte de novo.

Aos 160 anos o senhor começou a jogar videogame e ler mangá? O que você gostava?

Que nada! Eu só gostava dessas coisas plasticamente. Não conseguia ficar muito tempo lendo aquilo, não tinha paciência para decorar os comandos, enfim. Mas eu achava muito bonito. No caso do mangá o que me atraia era só o traço. No videogame era o fato de que, naquela época, as imagens eram todas feitas com os pontos né, que lá eles chamam de pixel. Eu achei que combinava com o ponto-cruz e investi.

De falar nome assim os dois que mais me atraíam eram o Akira Toryiama e os desenhos de mulheres tipo em Sailor Moon, Rayearth, que vieram um pouco depois. Mas, por exemplo, o Akira só me atraía o traço mesmo, a criação de monstros que ele fez pra Dragon Quest, que ficou muito famosa.

Eu odeio Dragon Ball Z, que também virou um fenômeno. Acho o desenho dos personagens muito bonitos, mas a história e aquele papo de personagem tarado, umas coisas de sexo, é um saco. Aquilo do Goku ser o mais forte do mundo, aí aparece um monstro mais forte ainda, ele derrota, depois vem outro mais forte ainda, isso eu achava uma besteira. Que história rasa.

E os videogames?

Nem sei muitos de falar nome. Os que lembro mais assim foram esses, Dragon Quest, os robôs do Rockman. Aquelas coisas da Nintendo tipo Mario, Metroid, Donkey Kong, eu só gostava das artes conceituais do Zelda. Jogar nunca joguei, ficava vendo nas lojas.

O senhor fala bastante do ponto-cruz mas você vende arte hoje feita digitalmente e depois impressa. Como esses dois modos de trabalhar se comunicam?

Eu fiz bastante coisa na época. Mas quase não vendeu, a arte aqui é meio mal vista se você não faz uma coisa tradicional. Os estrangeiros acham que eu sou mendigo. Na época que fazia tudo no ponto-cruz eu ia guardando. E você vê o tamanho da casa que moro hoje, é pequena. Uns dez anos atrás o Nu Wei, meu bisneto, teve a paciência de digitalizar minhas obras e me ensinou a fazer o ponto-cruz no tablet, aí acabei me desfazendo dos originais. É esse negócio que agora chamam de pixel-art e tudo. Tem uma galera da nova geração que faz bastante isso, né? Mal, mas faz.

O senhor não gosta da pixel-art?

Olha, eu vejo nessas coisas… Behance, Deviantart, Pinterest. Acho que no geral as pessoas entendem a lógica do negócio, de um jeito esquisito, mas entendem. Falta bom-gosto, bom-senso. Você vê assim, a proposta da pessoa é “vou fazer arte retrô, como se fosse, sei lá, um jogo do… Enfim, do Sega 16-Bit”. O cara desconsidera que o console tinha uma paleta de cores específicas, um limite de tons na tela, entende? Fica um trabalho legal mas que tá fora da proposta que o próprio artista está propondo. Minha maior implicância é essa. Pode parecer besteira mas faz toda a diferença.

Mesmo nunca tendo vendido um quadro, o senhor continua fazendo arte e todos os dias vai ao aeroporto com o seu material procurar compradores. O que te motiva a continuar?

Ali é um ponto bom, uma hora vai aparecer um estrangeiro e comprar minha arte. É o povo daqui que não esquenta tanto a cabeça. Já ouvi falar de artista que foi descoberto depois de um tempo e tem quadro que vale uma fortuna. E só uma correção: eu não continuo fazendo arte. Desde 2015 não faço um quadro.

Por que o senhor parou de criar?

Eu primeiro fiquei empolgado em fazer coisa aqui na telinha, fiz cerca de 30 obras. Mas ainda tenho pelo menos uns 40 ou 50 que não digitalizei. Então dei uma diminuída no ritmo pra não me atropelar.

O senhor acredita que vai morrer?

Meu filho, eu vivo a 204 anos. Desde que atingi ali os 70 e poucos, mais ou menos a idade que meus pais morreram, eu convivo com uma sensação de que qualquer dia pode ser o meu último dia — e nunca é, mas algum dia vai ser. Pode ser que sim, pode ser que não. É como a pergunta que você me fez sobre o que me motiva a continuar. O que me mantém vivo é o benefício da dúvida.

Comprei de Kwuaig as seis artes que ilustram essa reportagem. Paguei 26 taiopes, o valor que trouxe para cobrir os dez dias de hospedagem e alimentação em Mog Won. Minha missão nesse lugar estava cumprida, já podia comprar minha passagem e voltar para casa mais cedo. O homem de 204 anos ficou bastante grato e me prometeu que se essa entrevista ajudasse em sua carreira artística ele produziria sua melhor obra e me daria de presente. Agora, tudo está nas mãos de você que leu essa reportagem.

Tarcísio Souza, direto da República de Tsiuo para o Diário da Imprensa.

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Tarcísio Souza

Repórter especializado em jornalismo literário. Correspondente internacional em países fictícios do Diário da Imprensa.