Os filhos de Gaia e Políbio

Tarcísio Souza
11 min readFeb 16, 2021

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Como uma empresa de reprodução é fachada para um plano de soberania genética mundial

Está se tornando cada vez mais comum o surgimento de sociedades que apresentam propostas da vida em comunidade que parecem vir de outra dimensão. No coração do Loustai seis médicos pesquisadores de engenharia genética iniciaram um empreendimento inovador que anda revolucionando vidas. Trata-se do Projeto Gaia, espécie de comunidade alternativa voltada para a reprodução humana com foco na adoção e procriação independente.

As instalações do projeto ocupam cerca de 700 mil m². Laboratórios, maternidades, prédios de apartamentos, mercados, áreas de lazer (que incluem spa, cinema, piscina comunitária, um fliperama, restaurantes e quadras esportivas) e até um pequeno shopping fazem parte desse grande ninho da reprodução humana.

Com cinco anos de trabalho, Gaia já gerou 120 crianças. Além dos seis engenheiros, o projeto inclui um número sem fim funcionários e trinta pares de “fazendeiros”. O termo batiza homens e mulheres que doam seus corpos e materiais genéticos para a produção de bebês sob encomenda.

Com regras restritas, um dos princípios da iniciativa é garantir a aleatoriedade — Quem contrata os serviços não pode escolher nada sobre a criança ou seus “fazendeiros”, apenas se quer usar seu próprio material genético ou não. A medida procura garantir que os bebês gerados na fábrica não sejam moldados pelos contratantes, evitando assim uma possível procura por espécimes com características específicas. Em resumo, se você contrata o Projeto Gaia você não pode escolher o sexo, cor dos olhos, da pele ou dos cabelos. Tampouco optar por “fazendeiros” que sejam altos, baixos, magros ou fortes.

Segundo o Dr. Opus Kennedy, um dos fundadores do instituto, “essa medida impede que demos início a uma cadeia de pessoas procurando por bebês que tenham um determinado padrão estético que consideram mais bonito, melhor ou superior, porque isso é muito perigoso”. Gaia não quer um planeta povoado por crianças brancas, loiras e de olhos azuis, em resumo.

Vista aérea das instalações do Projeto Gaia

Dom Kennedy “Kesey” era uma figura popular do Velvet Corner Club, casa onde as grandes festas aconteciam enquanto fazia meu mestrado. Sempre acompanhado de um cetro, naquela época ele estava há dois semestres de se formar médico e era um verdadeiro barão. Bancava comandas nas festas e contratava músicos esquisitos para agitar suas noites onde era o dono da bola: Marc Ribot, Daniel Johnston e Mark Sandman tomavam conta dos palcos onde seus colegas de turma tarados por figuras como Jack Johnson, Ben Harper e Oasis se reuniam. Opus era um rei populista, mas o amor de seus súditos era apenas ao seu cartão de crédito que pagava sem pedir em troca o alimento de suas mentes — pelo menos era o que eu pensava.

Hoje, o Dr. Kennedy é uma pessoa completamente mudada. Aliás, se tornou assim há muito mais tempo, desde quando, de um semestre para o outro, sem explicações, desapareceu do Colégio de Stokkenlin para continuar seus estudos na Ranzzânia — de onde retornou após um ano, totalmente diferente, calvo e com a aparência de quem havia envelhecido quinze anos. Me vali dessa nossa antiga amizade para que ele abrisse os portões do Projeto Gaia para mim.

Doutor Opus Kennedy, o Dom Kesey, aos 34 anos

Após uma longa apresentação da área do Projeto, solicitei ao Dr. Kennedy a permissão para me tornar “fazendeiro” por uma semana. Durante a conversa percebi que consegui fazê-lo crer que seria uma boa ideia. Opus disse que precisaria se reunir com os outros diretores do projeto para discutir a questão e convocou os diretores que imediatamente se dirigiram ao seu escritório, onde discutiriam a questão por cerca de seis horas.

Esse tempo era mais do que necessário para eu peregrinar pelos esgotos daquela cidadela e cumprir minha real missão naquele lugar. Kennedy pediu que eu o aguardasse em um pequeno apartamento que ele chamava de seu “quarto de hóspedes”. Usei o cartão “free-pass” para comer uma das melhores refeições da minha vida e para comprar um corta-ventos novo, mas jamais para entrar naquele flat. Passei um pouco mal depois de comer e andar por aquele lugar. Vômitos, calafrios e algumas lembranças de uma antiga tentativa de suicídio vieram a minha cabeça. Tomei algumas pílulas para me recuperar e me dirigi para as áreas de lazer. Eu tinha uma missão a cumprir. Ou melhor, uma entrevista.

Aulas de natação são uma das programações oferecidas aos “fazendeiros”

Procurei o Lar de Gaia porque há cerca de três meses recebi um fax de uma “fazendeira” que se apresentava como Agente Genesis. Membro da primeira turma, a mulher tem por volta de 34 anos hoje. Disse que eu deveria usar óculos estilo Ciclope quando entrasse no fliperama e encontrá-la em frente à máquina Polybius.

Comecei a achar que havia algo realmente estranho quando li a escolha do aparelho. Famoso com a popularização das creepypastas em páginas da internet, Polybius seria supostamente um jogo de arcade criado em 1981 por uma empresa alemã (de nome Sinneslöchen, que pode ser traduzido como “extinção sensorial”) e que teria máquinas instaladas por Oregon em 1981. A lenda por trás do jogo acredita que ele foi desenvolvido como um experimento do governo estadunidense, que buscava testar respostas de psicoatividade no eletrônico.

Além de criar filas enormes nos fliperamas no subúrbio, Polybius poderia, entre outras coisas, apagar a memória do jogador, viciá-lo, causar terror noturno e até levá-lo ao suicído. Sua existência, na verdade, nunca foi provada. Acredita-se que é um protótipo de outro jogo, chamado Tempest, e nunca foi encontrada uma máquina original. Desde que a lenda se espalhou, fãs criaram uma ROM não oficial do jogo e desenvolveram gabinetes como os descritos pelas histórias.

— Essa é original, da coleção do Opus. Mas ele não permite que as pessoas joguem, a inicialização é bloqueada.

Olhei para o lado e percebi que Genesis havia me encontrado. Identifiquei um rosto que não via há anos. Porém, para manter sua segurança, nada mais posso revelar sobre sua fisionomia, além de que exibia uma barriga de gestante da qual não tenho prioridade para dizer se está no começo, meio ou fim da gravidez. Com sua permissão, liguei o gravador instalado em meu óculos para começarmos a entrevista. Nos dirigimos a outra máquina e jogamos algumas partidas de Warlords para não sermos notados.

Área do fliperama do Projeto Gaia onde entrevistei a Agente Genesis

Por que você queria ser entrevistada?

Por trás da ideia de revolução genética e facilitação das adoções legais, Gaia é só mais uma das megalomanias de Kesey, que quer fazer do mundo seu grande Velvet Corner Club. Quero expor essa história.

Há quanto tempo você está no Projeto Gaia?

Eu sou uma das matrizes, da primeira turma das mães de Gaia. Opus me trouxe para cá por nossa proximidade e, bem, você via como eram as coisas naquele tempo. Então, cinco anos aqui e esse bebê é minha quarta produção.

Você e outras pessoas estão aqui de forma forçada?

De jeito nenhum. As pessoas que entram em Gaia são muito selecionadas e acabam se apaixonando pelo lugar.

Quando alguém contrata o serviço de Gaia, ou seja, encomenda um bebê, ela investe um dinheiro altíssimo. Além de todos os custos (que incluem o pagamento de pelo menos dez meses de alto conforto para a gestante e os procedimentos médicos desde a concepção até o parto), ela paga um preço pelo bebê e aumenta a fortuna do Kesey, que é o verdadeiro dono de tudo isso. Não existe a sociedade médica que eles divulgam. Gaia não torna a maternidade acessível para o mundo, e sim para milionários. O resto é fachada.

Basicamente, quem é aceito como “fazendeiro”: é alguém de confiança de Opus, vive uma vida de muito conforto e é convencido por todo o cenário de que não faz sentido você sair desse lugar. Sua única restrição é não poder manter relações afetivas com outros “fazendeiros”, o que eles deixam claro no contrato mas também te induzem secretamente a sentir que não precisa desse tipo de relação na sua vida, de que é uma questão profissional em nome da ciência e de um projeto revolucionário e histórico.

A Agente Genesis

Sua resposta gera muitas outras perguntas. Primeiramente, qual é o grande absurdo desse lugar?

Kesey criou esse lugar para fazer o mundo mais parecido com ele. Qualquer criança que sai desse lugar é filha dele. Com suas refinadas pesquisas genéticas, ele conseguiu inserir fragmentos do seu DNA em todos os embriões produzidos nesse lugar.

Um chamariz de Gaia é que a reprodução é feita da forma mais natural possível, a não ser que um dos pais seja doador. Tornou-se moda essa história de “humanização”, certo? Parto humanizado, atendimento humanizado, aqui ele usa a expressão reprodução humanizada. Quando os bebês são produzidos aqui, os “fazendeiros” copulam para que aconteça a fecundação, quando o material não é doado pelo contratante. Recebemos um estimulador sexual e entramos em um quarto escuro onde o som não se propaga — para que, assim, não possamos nos comunicar verbalmente. Após sermos completamente examinados, entramos no quarto e somos observados por câmeras durante todo o ato para que não tentemos nos identificar de nenhuma forma. É uma das maneiras de eles garantirem que não nos envolvamos. Esse estimulante contém o material genético do Kesey que fica no nosso corpo durante as próximas horas e se mistura ao óvulo e aos espermatozóides. De alguma forma ele desenvolveu um jeito de produzir crianças que carregam o DNA dos pais e o dele. Quando o bebê é gerado com material genético doado, o mesmo procedimento é feito no laboratório, antes de a barriga de aluguel receber o embrião.

Um dos laboratórios de genética do Projeto Gaia

O que você acredita que Gaia ou o Dr. Opus Kennedy estão querendo com isso?

O objetivo dele é ter mais e mais controle sobre o mundo. Acredita que um pai tem controle sobre os filhos. Fora isso, quer ter sua assinatura genética por toda parte, para sentir que a humanidade tem origem nele. O plano de Gaia é que em até cinco anos a contratação do serviço se torne cada vez mais barata e, em algum momento, gratuita. Está tudo dentro de um grande planejamento e fora desse lugar ainda não existe tecnologia capaz de provar o que ele está fazendo.

Creio que seja óbvio que os contratantes não saibam disso. Mas e os “fazendeiros”? Estão cientes?

Não, também não sabem. Você conhece minha história com Kesey e, portanto, sabe que consigo ter acesso a informações que poucos têm. Nem todos os diretores estão a par dessa história, apenas Vince Droma e Patrícia Dennison, que desenvolveram a tecnologia com ele.

Como é hoje “a sua história” com o Dr. Kennedy? O que pode nos revelar sobre sua vida pessoal?

Kesey sempre me quis por perto e, logo no começo, quando comecei a entender o que ia acontecer em Gaia, resolvi me tornar um personagem para saber até onde essa história ia. Quando entrei aqui, a pessoa que eu era morreu e nasceu a Agente Genesis. Eu criei esse personagem e vivo ele. Aliás, a pessoa que você conheceu antes, com aquela personalidade e aquele nome, é o personagem hoje. Para mim, ela está morta e hoje sou a Agente Genesis.

Eu conheci de perto a cabeça de Kesey e sabia do que ele era capaz, mas eu não tinha as armas para provar isso ao mundo. Precisei me armar e me defender para coletar as informações que provam essa história. Hoje, sem ele perceber, eu tenho acesso a tudo que ele fala ou faz. Seu desejo por ser o dono do mundo, por uma atenção que ele nunca conseguiria sem o dinheiro, fez com que ele ficasse cego.

O que aconteceu a ele naquele semestre em que se mudou para a Ranzzânia?

Ele não saiu de Stokkenlin direto para a Ranzzânia. Nas férias ele fez uma viagem até Oregon. Lá ele ficou conhecendo a história do Polybius. Ficou fascinado e queria ter essa máquina que nem tinha certeza se existia. Virou Portland de cabeça para baixo e descobriu muito pouco. Depois, foi para a Grécia estudar o Diagrama de Políbio e rodou a Alemanha em busca da tal empresa que desenvolveu o jogo e do seu criador, Ed Rotberg.

Foto mais recente de Ed Rotberg, tirada há mais de seis anos

A Ranzzânia só surgiu quando ele localizou Rotberg através de muitos cálculos e experimentos usando o Diagrama de Políbio. Na verdade, ele não era mais programador. Era doutor e professor em uma faculdade de psicologia no Quitar, capital do país. Quando Kesey o conheceu, Ed disse que sabia que Opus o procurava e viria ao seu encontro em busca de respostas sobre o tal jogo.

Rotberg tinha um galpão na Ranzzânia cheio de máquinas de Polybius e deu todas para Kesey. Mas havia um porém. A versão que sempre ouvimos falar era um protótipo, e Ed estava entregando a Opus a ROM final, que causa muitas outras coisas ao cérebro humano. Junto delas também havia uma máquina original, que é essa aqui no fliperama e está junto com as outras para parecer apenas uma máquina comum. Apenas ele consegue jogá-la, através de uma chave.

Após passar um ano sendo discípulo de Rotberg, Kesey acordou um dia e o professor havia desaparecido. Tinha deixado a casa vazia e a chave para o galpão onde estavam as máquinas. Ele voltou para Stokkelin fingindo que nada havia acontecido, mas todo mundo notava ele diferente. Opus nunca me revelou muito do que aprendeu com Ed. A única coisa que sei é que ele transformou o Polybius em algo intrínseco nesse lugar. A organização das máquinas nesse fliperama em que estamos, a quantia que se paga para ter um bebê em centavos, o cardápio dos restaurantes, as alterações que faz nos códigos genéticos, tudo é Polybius. E o Diagrama de Políbio trabalha muito com criptografia. Não à toa só me comunico com você por bip ou fax, aparelhos que mantenho escondidos nesse lugar.

Cinco das máquinas com a versão final de Polybius, pertencentes ao Dr. Opus Kennedy. O número total de máquinas que possui é ainda um mistério

A Agente Genesis me entregou uma pasta com diversas provas, publicadas nas páginas centrais dessa edição de O Diário da Imprensa. Quando pediu que eu desligasse o gravador, se despediu dizendo que a gente não voltaria a se ver — o que eu já tinha certeza antes, afinal com essa reportagem Loustai entra na lista de países em que me proíbo visitar. Continuei a última partida de Stormlords sozinho e me dirigi a saída entregando meu “free-pass” na portaria do Lar de Gaia. Se fui admitido para ser “fazendeiro” por Dom Kesey não sei. Minha única certeza é que preciso reconsiderar as matérias que dizem que os videogames estragam as TVs.

Tarcísio Souza, direto do Loustai para o Diário da Imprensa.

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Tarcísio Souza

Repórter especializado em jornalismo literário. Correspondente internacional em países fictícios do Diário da Imprensa.