Loucura pouca é bobagem na Gautuérbia

Tarcísio Souza
8 min readDec 24, 2020

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O maior espetáculo da Terra! A maior corrida de rinocerontes do mundo!

Tive minha cota da República da Gautuérbia por volta de 1997 ou 1998. Quando a palhoça política se instalou naquele país decidi procurar matérias em outro lugar. Mas não sem antes garantir através de uma pauta que eu nunca mais retornaria àquela terra infrutífera.

Tobodago fica no interior de Insurânia, um dos estados mais podres do país. Eu, como estrangeiro, achava curioso como haviam comércios já considerados impossíveis naquela época em cada esquina. Não era incomum encontrar pela cidade os chamados “maquinódromos” — lojas em que o cliente pode alugar por hora o uso de máquinas de datilografia. Em plena época da ascensão do computador pessoal, eu não entendia como aqueles estabelecimentos estavam sempre abertos e com clientes. Outros serviços estranhos eram comuns: cópias por mimeógrafo, fotógrafos lambe-lambe, entre outras atrocidades.

Mas eu não estava pautado para investigar a corrupção steampunk daquele país. A minha missão era cobrir a tão estranha corrida de rinocerontes que movimentava a cidade.

Quando cheguei à Tobodago, em uma tarde de quarta-feira após oito horas de viagem de ônibus em estrada de chão, na qual passei mal horrores após tomar um caldo de gazela ardidíssimo na rodoviária, a cidade estava um completo deserto. Além de um velho banguela, que me fez comprar um relógio digital por 20 tocos, haviam mulheres descalças carregando barris sobre as cabeças enquanto o sol de Satã fazia a vista ondular no horizonte. Sinos de bicicletas tocavam compassados pela cidade como se fossem algum tipo de comunicação entre tribos.

Depois de muito andar com a mochila nas costas, encontrei a pensão onde sabe-se-Deus-como meu editor conseguiu me hospedar. Na porta, homens já idosos discutiam a veracidade de uma matéria sobre avistamento de OVNIS em Jaciara, uma cidade a 90 km dali. Talvez o OVNI fosse aquele ônibus, trazendo um desgraçado como eu para aquele lugar para cobrir uma corrida de rinocerontes.

Cenário de Tobodago em um dia sem corrida

Passei os dias seguintes trancado no quarto me recuperando do caldo. Quando acordei na manhã de sábado parecia que tinha sido teleportado. A cidade estava barulhenta, decorada e lotada — um verdadeiro carnaval. Quando cheguei à recepção do hotel, um garoto que aparentava ter uns treze anos segurou o meu braço.

— É você que é o jornalista? Meu nome é Biño, por quatro tocos posso ser o seu guia.

Biño durante a corrida de rinocerontes

Biño tinha uma aparência pouco agradável para quem vive o imaginário europeu. A pele queimada do Sol e buracos espaçados de forma estranha entre os crespos cabelos grisalhos. Seus olhos apontavam em direções completamente diferentes e seu tórax era bastante peludo. Estava mal vestido e não tinha treze anos, mas 47, oito a mais que eu. Como não temia a qualquer coisa, topei a ajuda do local — afinal, quatro tocos não pagavam nem a praga do caldo de gazela ardido.

Sentamos para tomar um café e perguntei a Biño sobre aquele tipo de comércio estranho mesmo para uma cidade da Gautuérbia. Exibindo seus poucos dentes em uma gargalhada escandalosa, ele respondeu baixando o tom:

— Prestenção, cabra. Aquilo é tudo lavagem de dinheiro. Por muito menos vagabundo te toma pra cristo.

Enfim, depois da agradável refeição, chegamos à corrida de rinocerontes. Um cenário um tanto tosco. Gente saindo pelo ladrão pendurada em grades. Parecia mais um galinheiro infestado de pulgas do que qualquer outra coisa.

— Chegamos na hora — Biño me indicou. — Olha ali. O juiz já vai dar o tiro.

Um homem alto de quase um metro e noventa e aparentando estar completamente fora de si aponta um revólver para o céu e conta o número um. No dois, abaixa a arma e mira na própria cabeça. No três, dispara contra o próprio crânio e a corrida tem início. BUM! Os rinocerontes rompem a cerca e começam a primeira volta da circunferência de quase um quilômetro de área. Na primeira curva, um dos cocheiros é arremessado contra uma parede e cai no chão com o pescoço torcido. Engolindo poeira, a torcida delira.

A multidão entediada enquanto a anarquia reina na pista

Para quem não curte escatologia, o esporte é entediante. Na metade da segunda das doze voltas os perissodáctilos começam a desanimar. Uns ficam completamente paralisados, outros dormem e os mais dedicados seguem de forma vagarosa. Um dos cocheiros deixa sua montaria seguir sozinha no piloto automático e desce para saquear os cadáveres do juiz e do competidor morto. Parece um esporte mais complexo que o baseball.

Quando me viro para pedir uma explicação para Biño, vejo que meu guia já desapareceu. Não me espanto ou enraiveço porque, afinal, naquela multidão suada e escrota não seria difícil perder ou receber um perdido de um homem de menos de um metro e meio.

Mas o destino não me deixaria sem uma figura estranha ao meu lado.

— Se está tediante o main event o seu queixo vai cair quando eu te contar sobre os bastidores. — foi a frase que escutei ao pé do ouvido enquanto tentava ver a cabeça de Biño entre os milhares de torcedores vibrantes.

Atrás de mim, um homem pálido de quase um metro e noventa que aparentava estar fora de si me convidava a acompanhá-lo. Fui atrás dele enquanto o evento seguia seu curso natural. Quando saímos de toda aquela multidão o homem me puxou e atravessamos becos e vielas de uma forma em que me sentia completamente perdido, até chegarmos ao fim de uma rua sem saída, onde havia uma porta de madeira de péssimo acabamento. Com um chute a porta se abriu. Entramos.

Após alguns minutos de conversa, o homem disse que usaria máscara e peruca durante a entrevista. Se identificaria como Cide e que gostaria de ter sua identidade ocultada. Confirmei o sigilo de fonte e deixei que ele falasse. Segundo o entrevistado, havia algo muito mais macabro do que aquela corrida escatológica apresentada no pardieiro que a cidade chamava de pista de corrida. Disse que sabia que eu era jornalista porque estava com Biño, que trabalhava para uma empresa de guias turísticos especializada em auxiliar jornalistas estrangeiros — e que, claro, era apenas fachada para lavagem de dinheiro. Sabendo da minha profissão, disse que não me contaria nada, a menos que eu perguntasse.

Cide — dúvidas e respostas sobre a corrida de rinocerontes

Quando me mandaram para cá para cobrir uma corrida de rinocerontes imaginei que seria uma competição tradicional, com cavalos substituídos por espécimes da fauna local. O que diabos foi aquilo que vi?

Você assistiu uma corrida de rinocerontes, que estava um pouco mais calma do que o comum. Rinocerontes não são parte da fauna local.

Quais são as regras dessa corrida?

Basicamente, os cocheiros têm que conduzir os rinocerontes do ponto inicial ao ponto final por doze vezes, o que chamamos de doze doses ou, para leigos, doze voltas. Esse é o objetivo. As regras, que foi o que você me perguntou, são opcionais e são determinadas por cada juiz. Já houve uma corrida em que os rinocerontes tinham que andar de ré. Em outra, o árbitro determinou que os cocheiros deveriam cortar as pernas dos animais antes de eles concluírem a última volta. O juiz de hoje entregou a planilha de regras em branco. Quando é assim, a corrida sempre é entediante.

E quando e como elas chegaram até aqui? Rinocerontes não são comuns na Gautuérbia então?

Foi por volta de 1907. Meu avô contava que o pai dele correu na primeira. O que se sabe é que um estrangeiro chegou a Tobodago e construiu a pista de corrida e trouxe os primeiros rinocerontes para cá. Seu nome era Altamiro Policarpo. Aqui ele casou com uma ex-escrava, chamada Beneditina.

Altamiro não perdeu nenhuma das competições que participou. Curiosamente, também foi ele quem apresentou o livro de regras, que dizia ter trazido do norte da ilha de Cuba. Naquela época já começou como um evento anual. Na primeira, matou meu bisavô esmagado, dizem que não foi proposital. O que há de curioso é que todo ano ele engravidava a esposa e, toda vez que ele era campeão, a criança morria. Ele ganhou sete corridas.

Depois disso o que aconteceu? Ele parou?

Quando ele chegou em casa com a sétima vitória, a Beneditina matou ele. Encontraram o corpo amarrado na cama todo fatiado. No lugar da cabeça, estava a cabeça do rinoceronte dele. Nem ela nem a sétima criança nunca foram encontradas.

Sangue, mutilação e morte são partes da tradição da corrida de rinocerontes

O que mais se sabe sobre o caso?

Nada. Queimaram a fazenda e rezaram o terreno.

Você disse que os bastidores dessas corridas são macabros. O que acontece fora das pistas?

Você deve ter ouvido pelas ruas de Tobodago que há muito esquema de lavagem de dinheiro pela cidade, certo? Não precisa nem responder que sim. Até aparição de OVNI no estado é lavagem de dinheiro. Mas, quando se trata de corrida de rinocerontes, o buraco é muito mais embaixo. Tão mais embaixo que os barões da lavagem não vão à essas corridas nem para assistir. Quem perde não volta para correr de novo e nem aparece na cidade para contar história.

Do que você está falando exatamente?

Não dá para eu te falar nada além disso não, mas vá ligando os pontos.

Cide me acompanhou até a viela que dava para a rua principal. Nem com todo o esforço do mundo eu lembraria o caminho até a sua casa. A cidade estava vazia de novo, não havia mais sinal algum da corrida — parecia até que não havia acontecido. Olhei para o meu relógio de pulso e o mostrador de data havia desaparecido. O contador de segundos estava travado entre o 8 e 9. Corri para a pensão e, quando encontrei o calendário, fiz uma constatação: Ainda era 30 de fevereiro e já eram quase sete da noite. Malditos vendedores de relógios vagabundos, essas baterias já não duram mais nada.

Tarcísio Souza, direto da República da Gautuérbia para o Diário da Imprensa.

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Tarcísio Souza

Repórter especializado em jornalismo literário. Correspondente internacional em países fictícios do Diário da Imprensa.